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Em Cartaz: Crítica de Les Miserables

  • Diego Cosac
  • 8 de fev. de 2020
  • 5 min de leitura


Achei que ia assistir mais uma versão do clássico francês “Os Miseráveis”, do romancista Victor Hugo, que também rendeu um belo musical na Broadway. Mas para minha surpresa o longa “Les Miserables” nos brinda com uma acirrada crítica social e até antropológica da França contemporânea e suas mazelas, citando o romance clássico homônimo e se fazendo valer desse trocadilho. Afinal no mesmo lugar, há 25 quilômetros de Paris, em 1862, se passou o drama histórico de Victor Hugo. Nessa produção, tudo acontece em 14 de outubro de 2008, em Montfermeil, quando a França ganha a Copa do Mundo. Dirigido e co-escrito por Ladj Ly, baseado em seu curta metragem de mesmo nome, é estrelado por Amien Bonnard, Alexis Manenti, Djebril Zonga e Issa Perica. Esse longa foi muito bem recebido, tanto pela crítica quanto pelo público em sua França de origem. Competindo inclusive pela Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2019, onde o filme ganhou o prêmio do júri, dividindo a honraria com o brasileiro “Bacurau” de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Está competindo pelo Oscar de melhor filme estrangeiro dia 09 agora. Muito embora o favorito seja “Parasita”, que provavelmente perde o prêmio de melhor filme para “1917” mas leva a estatueta dourada de melhor filme estrangeiro - agora chamado de filme internacional - categoria criada para premiar o cineasta italiano Frederico Fellini e seu “La Strada” (afinal um pouco de história do cinema não faz mal à ninguém). Com um roteiro bem construído que evolui gradativamente até um clímax “anarquista” e de tirar o fôlego, “Les Miserábles” aborda temas delicados e polêmicos inerentes ao cotidiano dos franceses de forma realista. Muito embora uma ficção, o filme facilmente poderia ser um documentário. A trama gira em torno do trio de policias que fazem a ronda em um subúrbio de Paris, convivendo de perto com o submundo das drogas, brigas, gangues, contrabando e principalmente a questão dos refugiados. A maioria mulçumana incomoda os mais tradicionais com seus costumes, idiomas e tradições, e a religião, a cor da pele, e as raças, sempre associados ao terrorismo. Os críticos se encontram totalmente alheios ao fato de que o Islamismo é a religião que mais cresce no planeta e que muito em breve dominará o mundo inteiro. A grande maioria dos mulçumanos não são ligados a nenhum tipo de organização terrorista obviamente. Um preconceito racial boçal, ignorante e reducionista, que incita a xenofobia, como se todo inglês fosse pirata, todo italiano fosse mafioso e todo colombiano ou boliviano fosse narcotraficante. Essa produção aborda essa questão de forma brilhante, nos mostrando todo um sistema organizacional de poder paralelo naquela comunidade de um grande aglomerado urbano, no caso conjuntos habitacionais (como acontece nas favelas brasileiras). Com lideranças diversas e seus conflitos, tem árabes, ciganos e africanos convivendo entre si e muitas vezes sobrevivendo entre si em uma harmonia de conto de fadas que a qualquer momento parece desmoronar como um castelo de areia. Ou uma Torre de Babel atual. Nos mostra uma realidade que incomodamente nos remete à nossa própria realidade do Brasil com uma polícia corrupta que abusa do seu poder se valendo da impunidade para perpetuar-se nele. E vemos que Brasil e França têm mais em comum do que aparentemente pode se julgar. Gosto de como o filme enfatiza uma França despedaçada e caótica, com realce de cores ocres na palheta, fugindo do estereótipo óbvio que se pintou ao longo da história do cinema. A Torre Effeil, o Champs-Élysées, a Av. Montaigne e suas lojas de moda de luxo, os hotéis Ritz e Plaza Athénée, o teatro Opera de Paris, Versailles e outros chateaus como os do Valle do Loire ou da região de Champagne, a Provence e a Cote D’Azur, estão há anos luz de distância daquilo tudo, quase em outra dimensão. A realidade nua e crua do filme é um tapa na cara daqueles que com suas máscaras e maquilagem mantém a pose de que está tudo bem. Está tudo bem para quem? Bernard Arnault ou Francois Pinault? Os Lagardére ou os herdeiros de Liliane Bettencourt, que foi a mulher mais rica do mundo? Algumas das maiores fortunas francesas. Um por cento da população se chegar a isso. E os outros milhões que coabitam o país? Parece tanto o Brasil. Pode parecer hipócrita pensar assim tendo em vista meu background familiar de fato elitizado. Mas não me esqueço do fato que meu avô, Nazir João Cosac, imigrante sírio, chegou pobre no Brasil antes de fazer a América como se diz. Admiro muito os imigrantes, países como nosso Brasil e os EUA, são totalmente feitos de imigrantes. No Brasil, fomos feitos de africanos, japoneses (São Paulo é a maior população de japoneses fora do Japão), libaneses (o Brasil tem mais libaneses e descendentes de libaneses que o próprio Líbano), italianos, portugueses, judeus... e agora com esse novo êxodo também os venezuelanos. Todos os brasileiros, que não índios, foram imigrantes um dia no sentido de que seus ancestrais o foram. O Brasil foi feito por esses bravos homens e mulheres, a colônia sírio-libanesa na capital mais próspera da América Latina, São Paulo, ficou riquíssima com famílias como os Jafet, os Maluf e os Gebrim, família de minha avó, do mercado de tecidos. Vide o hospital mais renomado do continente, Sírio-Libanês e dois dos hotéis mais icônicos de São Paulo, Maksoud Plaza e Mofarrej. Os italianos com a indústria, os portugueses com padarias e supermercados, os árabes no comércio e café... Esses imigrantes fizeram São Paulo e o Brasil. Uma forma de se constatar facilmente isso são as placas com nomes de ruas, avenidas, alamedas, praças... em São Paulo que possuem em sua quase totalidade, ou nomes árabes ou italianos. Os próprios avós do presidente dos EUA, Donald Trump, que condena a imigração em seu país com uma política combativa, eram imigrantes. Uma grande contradição. Por outro lado a civilização atual vive um colapso com legiões de pessoas querendo sair de seus países de origem para buscar melhores condições de vida em outros. O que há de errado nisso? Absolutamente nada. A fome, a guerra, as doenças... muitas vezes forçam o ser humano a tal atitude extrema. A grande verdade é que a maioria não quer deixar sua terra, sua casa, às vezes a família e os amigos, para partir para outro “mundo”. Mas a sobrevivência fala mais alto. O filme se empenha também em desenrolar tramas paralelas, como o sumiço de um filhote de leão do circo local gerido pelos ciganos, o controle territorial e administrativo disputado pelo “prefeito”, o dono da boate e o dono de uma lanchonete. O papel da polícia nisso tudo. A subtrama do garoto atingido por um tiro de borracha na cara e os policiais em desespero para ocultar sua participação direta no crime, casualmente filmado por um drone que rondava a vizinhança, complementam a narrativa. A eterna música “As Time Goes By”, eternizada no clássico filme “Casablanca”, estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, como sua trilha sonora mais icônica, nos brinda com um resumo de tudo isso, pois assim canta a canção: “It's still the same old story, a fight for love and glory, a case of do or die...” que traduzindo seria: Continua a mesma história, uma luta por amor e glória, um caso de fazer ou morrer... O final com cenas de rebelião são um desfecho ideal para nos mostrar que a falta de um poder nos leva sempre à outro poder, no caso um poder “paralelo”. A falta de justiça é perigosa, pois muitas vezes se faz justiça com as próprias mãos. E a sociedade clama por isso, não só no Brasil, mas na Europa também. Sendo, finalmente, um clamor universal. Os planos com drones, como alguns zenitais, são artifícios belos na linguagem que se constrói nesse longa. Atuações convincentes. Roteiro bem desenvolvido. Tudo contribui para o sucesso de “Les Miserables”, muito embora a mensagem e discussão que esse filme nos propõe seja, de longe, seu maior atrativo. Altamente recomendado!

 
 
 

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